Fonte: Diário de Notícias
O jurista sul-africano André Thomashausen considerou “prematuro” e “invulgar” que a Procuradoria Geral da República (PGR) leve a julgamento o caso das dívidas ocultas” sem identificar e comprovar os alegados crimes no maior caso de corrupção e fraude no país.
“É um julgamento prematuro, é invulgar que uma Procuradoria leve a julgamento um caso em que os elementos mais fundamentais e mais importantes sobre os crimes possivelmente cometidos não estão identificados e comprovados”, referiu o académico jubilado da Universidade da África do Sul.
“E a testemunha-chave que é o antigo Ministro das Finanças Manuel Chang, continua sem fazer o seu depoimento e indisponível como testemunha porque o pedido de extradição para ir prestar declarações em Moçambique não foi concedido pela África do Sul e, desse modo, o caso, em termos de prática jurídica, não tem maturidade suficiente para ir a julgamento”, considerou Thomashausen.
Na ótica do jurista, a Procuradoria-Geral da República “não esclareceu plenamente as circunstâncias e os factos sobre as dívidas ocultas”, o que quase necessariamente vai obrigar o Tribunal a absolver os arguidos porque não se vai conseguir provar exatamente o que aconteceu”.
“É até provável que seja essa a estratégia, porque é estranho uma Procuradoria levar um processo a julgamento com tantas circunstâncias por esclarecer, inclusive o depoimento de Manuel Chang”, explicou Thomashausen.
Todavia, o especialista em direito internacional e comparado considerou também que o processo será “muito interessante” porque “talvez seja uma grande oportunidade para a Justiça moçambicana romper com a sua tradição de ter sido sempre cativa do poder político”, sublinhando que “haverá provavelmente sentenças pequenas, mas o grande problema das dívidas ocultas” continuará oculto”.
Nesse sentido, referiu Thomashausen, “este processo é prematuro porque não se conseguiu estabelecer realmente a verdade, nem as circunstâncias plenas, praticamente um terço do dinheiro desaparecido não está de maneira alguma esclarecido”.
“Não há contabilidade, ninguém pode dizer onde ficou esse dinheiro, se ficou na mão do intermediário, se foi roubado, se foi utilizado para a compra de material bélico, ou se foi utilizado para pagamento de salários, não se sabe, e Moçambique tem recusado sempre a participação até do Banco Mundial sobre uma auditoria”, salientou.
“Aí temos um problema gravíssimo no processo, porque um juiz vai dizer que não pode julgar essa gente por falta dos elementos para comprovar o crime”, adiantou. O académico sul-africano antecipou ainda que o julgamento “vai se arrastar por muito tempo”, porque também “convém provavelmente arrastar até ao fim do mandato corrente do Presidente da República Filipe Nyusi para não interferir nos planos políticos do partido (Frelimo, no poder em Moçambique desde 1974)”.
“É o que se tem feito aqui na África do Sul com o processo de Zuma que já está a ser arrastado há mais de 20 anos e nunca mais vai a julgamento”, adiantou. Para o jurista, “a grande questão” em jogo pode-se “deduzir de um depoimento do ex-presidente Guebuza”, em que disse que “de facto não assinou nada”.
“E é verdade, Guebuza deixou ou mandou assinar tudo pelo então ministro da Defesa Nacional que é o atual Presidente da República Filipe Nyusi e o que realmente está aqui em jogo é a boa reputação e a inocência do atual chefe de Estado”, acrescentou.
Questionado se o julgamento no Tribunal Supremo (TS), em Maputo, permitirá esclarecer o processo das dívidas ocultas”, o analista notou que “seria um desfecho ótimo, que daria um grande prestígio a um país africano ter encontrado a força e a capacidade para resolver um grande escândalo financeiro, um grande escândalo de corrupção, pelos seus próprios meios”.
“Esperemos que seja assim, a grande dificuldade do tribunal e também da Procuradoria moçambicana vai ser estabelecer os factos, as provas e as circunstâncias que poderiam permitir responsabilidades claras”, anteviu.
Thomashausen salientou que “cada um dos 19 arguidos vai sempre defenderse na base de que agiu por ordem superior porque foi assim instruído”.
“Neste momento ninguém consegue estabelecer quem é que realmente foi o iniciador, o motivador, de incorrer nestas dívidas de 2,2 mil milhões de dólares e quem deu as instruções sobre a utilização dessas verbas, e uma grande parte desse montante, no mínimo 700 milhões de euros, continua por esclarecer, não há realmente provas sobre o que se fez com esse dinheiro”, frisou. O académico jubilado da Unisa apontou o arguido António Carlos do Rosário, antigo diretor da inteligência económica do Serviço de Informação e Segurança do Estado (SISE), como “uma personalidade-chave”, mas “é difícil de prever o que poderá partilhar e o que não vai partilhar”.
“A Frelimo, ao contrário de alguns outros movimentos de libertação aqui na África Austral, tem infelizmente uma tradição de resolver assuntos demasiados delicados pela via dos assassinatos e ao longo da história da Frelimo temos regularmente tido assassinatos políticos”, afirmou Thomashausen, recordando o jornalista Carlos Cardoso, assassinado quando “estava em vias de revelar mais um grande escândalo financeiro que beneficiava o partido no poder”.
“Por isso julgo que muitos dos arguidos terão um grande cuidado para insistir no seu direito de não prestar declarações”, vincou.
O julgamento do processo das chamadas Dividas ocultas começa na segunda-feira e terá no banco dos réus 19 arguidos, com 70 testemunhas e 69 declarantes, indicou o TS de Moçambique. Manuel Chang foi detido pela polícia sul-africana a pedido dos Estados Unidos da América no aeroporto internacional de Joanesburgo em 29 de dezembro de 2018, a caminho do Dubai, acusado de lavagem de dinheiro e fraude financeira, e encontra-se detido na prisão de Modderbee, em Benoni, leste de Joanesburgo.
O antigo ministro das Finanças moçambicano é considerado “peça-chave” nas dívidas ocultas
contraídas entre 2013 e 2014, à revelia do parlamento, no valor de 2,2 mil milhões de dólares, ao assinar as garantias de Estado em nome do Governo do ex-presidente Armando Guebuza. Os empréstimos ocultos do Estado moçambicano junto do Credit Suisse e do banco russo VTB, foram justificados com projetos marítimos das empresas públicas Ematum, Proindicus e MAM, fornecidos pelo grupo Privinvest, mas que nunca se concretizaram.