Fonte: O País
Em entrevista à Stv, o epidemiologista e membro da comissão técnico-científica, Avertino Barreto falou dos temas mais candentes da sociedade, como o terrorismo e o processo de vacinação. Para o médico, não faz sentido que o Estado tenha ficado tanto tempo para reagir face à agressão terrorista, tendo defendido que a causa dos conflitos que o país viveu tem origem em atitudes egocêntricas. Sobre a vacinação, Barreto disse não acreditar no alcance das metas do plano e defendeu uma abordagem porta-a-porta.
O processo de vacinação arrancou no país e as autoridades de saúde estimam vacinar 16.825.333 pessoas maiores de 15 anos de idade, o que corresponde a 54,6% da população total. O especialista em Saúde Pública é a favor da vacinação, mas não acredita que o país possa atingir essa meta tão brevemente.
“Sou muito céptico em relação ao alcance dessa meta. Acho que nem em finais de 2022 poderemos ter vacinas suficientes para atingir a meta de imunizar essa quantidade de pessoas. O que temos vindo a receber, aos bocados, é um contributo, mas não acredito que vá chegar para atingir as nossas metas”, iniciou o epidemiologista para depois avançar que “olhando para o padrão epidemiológico, para os grupos mais vulneráveis, não vamos conseguir nem no final deste ano garantir a imunidade de grupo. O que vamos vacinar não vai permitir que tenhamos a imunidade de grupo, vai sim permitir que aqueles que forem vacinados, no âmbito dos grupos prioritários – não são todos que serão abrangidos – a esses vamos evitar que tenham doença moderada a grave. Vamos impedir que morram menos por causa da COVID-19, mas todos os outros que não conseguirmos vacinar serão infectados e irão constituir aquela bola de neve. Inclusive os vacinados, se não tomarem as devidas cautelas, poderão não desenvolver doença moderada a grave, mas poderão infectar outras pessoas”, reiterou Barreto para quem deve tirar-se o pensamento de algumas pessoas de que a vacina cura.
Avertino Barreto aponta os boatos e a desinformação como inimigos que colocam em causa o processo de vacinação no país. “Andam movimentos de descrédito em relação à vacinação. Temos grupos de pessoas que fizeram a primeira dose e defendem que não farão a segunda. Há pessoas que estão a induzir outras a pensamentos errados, espalhando boatos de que a vacinação é inútil. Há essas contrariedades, apesar dos esforços que estão a ser feitos. A Cidade de Maputo é um exemplo gritante desta realidade em que se adiou, por duas vezes, a campanha da primeira fase”, lamentou o especialista para continuar dizendo que “temos indivíduos que não vacinam, por questões religiosas, ou por outras, e ainda outros que não se sentiram bem depois da primeira dose. Tiveram efeitos secundários, como já era previsto e estão a induzir os outros a não participar do processo”, explicou.
“TEMOS QUE IR À CASA DAS PESSOAS VACINAR”
Face a esse cenário de algum descrédito, o membro da Comissão Técnico-Científica para Prevenção e Resposta à Pandemia de COVID-19 lamenta que o sector da saúde tenha perdido a capacidade de mobilização.
“A saúde, nos últimos anos, perdeu a capacidade de mobilização, infelizmente. A vacinação era algo sagrado, mas hoje o sector perdeu muito dessa capacidade. Hoje julgamos que todos têm acesso à televisão, todos têm acesso às tecnologias e não vamos à casa das pessoas. Eu sou do tempo em que íamos à casa das pessoas. Hoje abdicamos desse esforço que é crucial para que possamos atingir os melhores resultados em termos de prevenção. Se não constituir dificuldade, temos que ir à casa das pessoas para vacinar. Temos que arranjar formas para todos aqueles que têm receio, ou têm alguma barreira para fazer parte da vacinação”, defendeu para, em seguida, explicar como as coisas aconteciam antigamente.
“Tínhamos os professores, os outros ministérios, a trabalhar em conjunto com os recursos que tinham, para garantir que as campanhas de vacinação acontecessem. Hoje em dia, temos uma saúde praticamente abandonada com os seus recursos. O sector da saúde vive a desconfiança da população. As pessoas desenvolveram essa desconfiança, porque não têm acesso aos medicamentos e têm que ir à farmácia privada e, quando lá chegam, não têm dinheiro para pagar os fármacos. Então, há toda uma dinâmica de retrocessos, no sector público de saúde, que agrava a capacidade de resposta neste tipo de situações”.
MÉDICO ALERTA PARA RISCOS DA SOBRECARGA DO SISTEMA DE SAÚDE
Noutro desenvolvimento, o especialista lamentou a situação de pressão a que estão sujeitos os profissionais de saúde na linha da frente e alertou para cenários de sobrecarga do sector.
“Ao não prevenirmos, ao não acatarmos as recomendações, estamos a induzir o serviço de saúde a um cansaço e a um trabalho desumano. Problemas maiores podem surgir em resultado do esgotamento do serviço de saúde. Deixo um apelo vigoroso para que possamos cumprir as medidas de prevenção e aqueles que falharam a primeira dose da vacina devem deslocar-se aos postos de vacinação para que concluam a imunização”, exortou Barreto, tendo reiterado elogios aos profissionais de saúde. “Quando isto terminar, irei glorificar, em todo o país, os profissionais de saúde, porque não houve, neste país, uma situação que deu tanto trabalho como está e que exigiu uma atenção tão rigorosa para que as pessoas não morram”, elogiou.
EGOÍSMO COMO CAUSA DOS CONFLITOS EM MOÇAMBIQUE
Mais do que falar da saúde, o epidemiologista, com larga experiência sobre o contexto moçambicano, abordou ainda questões políticas. Para ele, não faz sentido que o Governo tenha ficado tanto tempo para agir em relação à questão do terrorismo em Cabo Delgado.
“Moçambique tem larga experiência de anos de guerra, com milhões de pessoas deslocadas interna e externamente. Eu ainda não consigo explicar a situação de Cabo Delgado, um problema que começou em 2017, com gravidade e esperamos até 2021 para tomar medidas. Como médico e como ser humano, ouvia que haviam atrocidades, actos de violência e permitimos que tivéssemos situações de deslocados, permitimos uma situação que já sabíamos quais seriam os efeitos. Deveríamos ter sido mais agressivos, não sou especialista militar e não sou político, sou humano e médico e tenho experiência do período da guerra, estive em campos de deslocados neste país e noutras nações. Moçambique era bem visto além-fronteiras e chegou a receber tantos apoios que hoje já não vejo.”
O médico tem um posicionamento firme sobre a causa dos conflitos a que o país assistiu na pós-independência e aponta o egoísmo como o centro de todos males. “O país foi vítima de ideologias diferentes, depois são as teimosias. Há pessoas que teimosa e orgulhosamente insistem em tomar decisões para si próprias e não para o bem de todos. Há grandes interesses individuais, há interesses de grandes empresas e esquecem-se dos interesses da maioria. Isso tudo acumulado origina esta desestabilização, origina essa desgraça que estamos a viver”, concluiu.