Fonte: CartaMz
De uns tempos para cá, a comunicação social tem sido polvilhada de uma narrativa enviesada, e sem contraditório, sobre o contexto da exportação do feijão bóer para a Índia, a qual coloca um grupo económico de Nampula, o Grupo Royal, no centro de uma alegada orquestração maliciosa visando afastar do negócio grupos de exportadores indianos que detinham o monopólio da exportação e pagavam ao camponês 5,00 Mts por kg, obtendo estrondosas margens de lucro.
Alertada sobre essa narrativa, “Carta de Moçambique” fez sua própria investigação, cruzando fontes e submetendo-se ao contraditório como nunca antes ninguém tinha feito. A história parece intrincada, mas não passa de um rosário de mentiras (como a do suposto encalhamento em Nacala de 150 mil toneladas), envolvendo “fontes anónimas” e incluindo oficiais de agências governamentais.
O passado
A exportação do feijão bóer para a Índia, até 2016, era controlada por dois gigantescos grupos, nomeadamente o MozGrain e o Grupo ETG (Export Trading Group), um conglomerado essencialmente ligado à exportação de “commodities” (produtos agrícolas), logística, fertilizantes e sementes, fundado no Quênia nos anos 70 e que, a partir de 1991, passou a ser controlado por um cidadão indiano naturalizado lá, de nome Mahesh Patel, um antigo contabilista da empresa. Estes dois grupos controlam o mercado de exportação de leguminosas e oleaginosas há mais de 20 anos. Operadores do sector entrevistados pelo nosso jornal disseram que os dois grupos controlam o acesso aos silos e os armazéns do Instituto de Cereais de Moçambique (ICM), reduzindo as chances e oportunidade de utilização por parte de empresas moçambicanas.
Baseado em Dar-es-Salaam, na Tanzânia, Patel (ETG) expandiu o grupo por cerca de 40 países espalhados por todo o globo, de acordo com um perfil encontrado nas páginas web da OMC (Organização Mundial do Comércio). E de acordo com uma edição de 2016 da revista www.campdenfb.com (family business), a família de Mahesh Patel assumiu neste ano a posição 18 numa lista de “as famílias mais ricas de África”, com um lucro anual de 2 biliões de USD.
Em Moçambique, o ETG opera há mais de 25 anos, de acordo com Venkatesh I, de nacionalidade indiana, gestor operacional da empresa em Moçambique, baseado em Nacala. Certamente que parte dos lucros milionários do ETG, e da família Mahesh Patel, resultam da exploração desenfreada dos camponeses da Zambézia e Nampula, os maiores produtores de oleaginosas e leguminosas do país, no caso concreto de feijão bóer (Cajanus Cajan Millsp, de seu nome científico, é a leguminosa da preferência e eleição na dieta da população indiana, o que faz da Índia um dos maiores importadores desta cultura, apesar de também a produzir internamente).
Durante vários anos, até 2016, o Grupo ETG monopolizou todo o negócio da exportação de leguminosas e oleaginosas para a Índia, pagando valores irrisórios aos camponeses moçambicanos, de acordo com dados disponíveis. Aliás, a maioria dos operadores do sector são estrangeiros, nomeadamente empresas indianas. O próprio Grupo ETG diversificou sua personalidade jurídica no país, passando a operar com várias subsidiárias, entre as quais constam a Export Marketing Company, Export Marketing Company (Beira), ETG Pulses Mozambique, Agro Processors Exporters, e Agro Industries, um grupo de empresas que terá feito na Índia uma denúncia caluniosa contra o Grupo Royal, empresa moçambicana que desde 2017 penetrou no mercado, desafiando o monopólio da multinacional de origem indiana.
(A alegada denúncia caluniosa foi um tiro pela culatra; as empresas do Grupo ETG terão denunciado um carregamento de soja do Grupo Royal para a Índia, alegando que se tratava de soja com origem em sementes geneticamente modificadas; Depois desse ataque violento na Índia, tanto na justiça como na mídia local, o Grupo Royal conseguiu provar sua inocência; e para ser ressarcido por danos milionários, intentou uma acção judicial, junto do Tribunal Judicial de Nampula contra o referido grupo empresarial, num montante de 60.6 milhões de USD, mas o juiz do caso julgou a questão de “improcedente”. Escrevendo sobre o assunto, um semanário escreveu em manchete que o Grupo Royal tinha sido condenado a pagar…uma quantia de 15 Mil Meticais, na verdade uma “condenação simbólica”, relegando para o plano secundário a decisão sobre a “improcedência” da acção. Em próximas edições, “Carta de Moçambique” vai explicar detalhadamente em que consistiu a “Operação Soja na Índia”, onde o empresário moçambicano Hassnein Taki (CEO do Grupo Royal) bateu-se de forma brava, limpando a imagem caluniosa pintada sobre a sua empresa e sobre Moçambique, país que já estava a ser conotado na Índia como origem de soja geneticamente modificada).
A imposição do sistema de quotas pela Índia
A Índia foi sempre uma grande importadora do feijão bóer, num cenário de ausência de proteccionismo, pois sua produção interna era sempre limitada. Em contrapartida, deste 2014, registou-se em Moçambique um crescente envolvimento das famílias camponesas (Zambézia e Nampula) no cultivo do feijão bóer, em grande escala, tornando esta leguminosa uma importante cultura de rendimento, voltada à exportação.
Galvanizados pela procura Indiana (o défice entre a produção e o consumo deste feijão, na Índia, rondava numa média de 500,000 toneladas por ano, segundo dados oficiais), vários países africanos, com destaque para Moçambique e Tanzânia, emergiram rapidamente como exportadores de peso do feijão bóer. De acordo com um relatório sobre a cadeia de valor do feijão bóer, a produção teve uma subida exponencial, atingindo quase 200 mil toneladas em 2016. E, durante a colheita de 2016, o país exportou mais de 170 mil toneladas de feijão bóer, o que corresponde a USD 125 milhões.
Durante vários anos, a Índia enfrentou desafios para responder à crescente procura interna e teve de recorrer às importações, tornando-se o principal mercado mundial (90% das importações). E em 2016, para além de importar de vários países, incluindo Moçambique, a Índia estimulou paralelamente a produção doméstica, resultando numa colheita recorde, em 2017, de quase 5 milhões de toneladas métricas, satisfazendo a procura interna e deixando um excedente de mais de 1 milhão de toneladas, de acordo com o estudo da cadeia de valor.
Foi neste contexto que, em 2016, o Primeiro-Ministro indiano, Narendra Modi, visitou Moçambique e assinou com Maputo um Memorando de Entendimento através do qual oficializou o compromisso da Índia de importar 125 mil toneladas de feijão bóer em 2017-18, aumentando gradualmente para 200 mil toneladas até 2020-21.
Índia “rasga” Memorando de Entendimento com Maputo
A introdução das quotas por parte da Índia coincidiu com a estrada de novos “players” no sector, marcadamente moçambicanos, um dos quais o Grupo Royal, que imprimiu a sua agressividade na relação com os camponeses. Entretanto, a super-produção indiana fez colapsar o preço do produto no mercado internacional, mas, apesar disto, aquele grupo passou a adquirir aos camponeses feijão bóer a 35,00 Mts/kg, muito para além dos 5,00 Mts/kg que eram pagos pelos grupos indianos, acabando com o monopólio e poderio estrangeiro que se prolongara até 2016.
O sistema de quotas limita as exportações do feijão bóer numa quantidade fixa de toneladas. Neste sentido, as quotas, em número de toneladas, são distribuídas pelos exportadores de acordo com as suas capacidades de exportação. O Memorando de Entendimento começou a ser prorrogado a partir do ano fiscal 2020/2021, sempre tendo como base a quota de 200 mil toneladas anuais.
Mas em Dezembro de 2022, a Índia surpreende com uma atitude unilateral que, estranhamente, foi ignorada pelo nosso Ministério da Indústria e Comércio: rasga o Memorando e comunica a liberalização do mercado de importações do feijão bóer, ou seja, interrompe o regime da quota. O Governo da Índia mandou publicar que a importação do feijão bóer estava livre do sistema de quotas, removendo-se o acordo firmado com a República de Moçambique. A liberalização do mercado de importação por parte da Índia tem a ver com o aumento da procura do produto no mercado, sobretudo nas épocas em que regista uma baixa produção interna.
MIC ignora decisão da Índia
Durante vários meses, o MIC ignorou a decisão indiana. Foi um silêncio apadrinhado pelo ICM, com a inexorável chancela do Ministro da Indústria e Comércio, Silvino Moreno. Depois da decisão indiana, estas duas entidades vêm alimentando uma omissão de um evento que mudou a história do Memorando entre Moçambique e Índia, no período da vigência da sua prorrogação, concretamente em Dezembro de 2022.
Uma questão que nunca quis calar e que é a razão de fundo para a falsa polêmica é a seguinte: porque é que o Ministro da Indústria e Comércio, Silvino Moreno, chancelou um concurso público, em Abril de 2023, para a selecção de exportadores do feijão bóer no regime de quotas, enquanto o Governo indiano já tinha, em Dezembro de 2022, liberalizado o mercado de importações desta leguminosa?
Por outro lado, se as exportações do feijão bóer para a República da Índia não estavam limitadas às quantidades fixadas no Memorando (200 mil toneladas), por que razão o ICM, em Abril de 2023, lançou um concurso para selecção de exportadores e, com a chancela do MIC, estabelecendo quotas para a exportação do feijão bóer para o ano fiscal 2023/2024? Estas e outras questões precisam de clarificação por parte de Silvino Moreno. Uma entrevista com ele havia sido marcada para o início da semana passada, mas ele teve de viajar com urgência.
O Concurso Público no 01/ICM/DG/DA/2023
Em Abril do corrente ano (2023), perto de 06 dias após o início da vigência do sistema de quota livre, resultante da liberalização das importações do feijão bóer por parte do Governo da Índia, o ICM lançou o Concurso Público no 01/ICM/IP/DG/DA/2023 cujo objecto era a selecção de empresa em condições para exportar a leguminosa para a Índia.
Na sequência foram seleccionadas 33 empresas e, por intermédio de uma adenda, chancelada pelo Ministro da Indústria e Comércio, Silvino Moreno, foram apuradas mais empresas até perfazerem uma lista de 45, a denominada “lista curta”. O ICM enviou comunicações a cada uma das 45 empresas, atribuindo quotas para exportação do feijão bóer, distribuindo-se, assim, a quota anual de 200 mil toneladas a serem exportadas para a Índia.
O mesmo ICM, a 10 de Agosto de 2023, enviou missivas para as Alfândegas de Moçambique, concretamente para as subunidades da Beira e Nacala, anunciando um rol de directivas a serem seguidas no processo de exportação do feijão bóer para Índia, anexando o modelo de certificado de origem a ser utilizado e a lista curta contendo a quantidade da quota atribuída a cada uma das 45 empresas. Lê-se nas aludidas cartas que “só depois de realizada a exportação da quota global (200 mil toneladas) e após a verificação e confirmação, junto dos intervenientes na cadeia de exportação, proceder-se-á à exportação ao abrigo da quota livre”.
Ou seja, apesar de o Governo da Índia ter liberalizado as importações do feijão bóer para o período de 31 de Março de 2023 a 31 de Março de 2024, o ICM continuava a impor as quotas. Por outro lado, o Ministro da Indústria e Comércio, em carta datada de 31 de Agosto de 2023, reforçou as medidas constantes da carta do dia 10 de Agosto, comunicando às Alfândegas que “as medidas e os procedimentos que constam da carta de 10 de Agosto são definitivas e não devem ser aceites quaisquer ofícios, cartas ou instruções que as contrariem”.
Observe-se que as Alfândegas de Moçambique, uma das instituições que agora emergiu nalguma imprensa como vítima da expiação e entregue aos “pecados desta saga”, apenas cederam ao pedido de colaboração formulado pelo ICM e sem prejuízo das regras do desembaraço aduaneiro, administraram os processos de exportação em conformidade com os limites fixados nas quotas atribuídas a cada uma das 45 empresas.
A emissão desenfreada de certificados de quota livre, as contradições institucionais e a violação dos termos do ICM
Com o lançamento do concurso, o ICM criou expectativas no seio dos concorrentes de boa-fé que, até ao momento da expedição da carta do dia 10 de Agosto de 2023, tinham os seus direitos adquiridos numa situação de plena segurança jurídica (a lista curta das 45 empresas seleccionadas e com quantidades de quota a exportar atribuídas), mesmo que esse concurso estivesse desalinhado com a política do país importador.
O ICM viria a surpreender os operadores quando, sem explicações, começou a emitir certificados para exportação do feijão bóer sob o regime de quota livre, ou seja, para além das quantidades atribuídas às empresas seleccionadas. Pior, a emissão de certificados estava a ser passada a favor de empresas que não constavam da lista curta, a lista das 45 empresas seleccionadas, desvirtuando a essência do concurso.
Isso levou à indignação por parte dos concorrentes e exportadores seleccionados: se o ICM estava a emitir certificados no âmbito da quota livre, nomeadamente a favor de empresas que não participaram do concurso, por que razão esse concurso foi lançado. “Carta” tem vindo a tentar contactar, em vão, o Director-Geral do ICM, Alfredo Nampuio.
No quadro dessa indignação, a Mazua Comercial, uma das 45 empresas seleccionadas, intentou uma acção junto do Tribunal Administrativo da Cidade de Maputo, pedindo a suspensão de eficácia dos actos do Director-Geral do ICM, Alfredo Nampuio, porque estavam em contradição com os termos do concurso e das directivas constantes da carta do dia 31 de Agosto de 2023.
O Tribunal deu provimento ao pedido de suspensão de eficácia remetido pela Mazua Comercial e proibiu a continuidade de execução dos actos do Director do ICM, impedindo a emissão de certificados de quota livre para exportação do feijão bóer em quantidades superiores à quota atribuída e a favor de empresas que não faziam parte da lista curta. O mesmo Tribunal instruiu as Alfândegas de Moçambique para colaborar na implementação da medida jurisdicional.
O Tribunal Administrativo terá reparado as contradições do Ministério da Indústria e Comércio, nomeadamente ao comunicar a “liberalização” do mercado de exportações, ignorando o sistema de quotas que ele próprio impôs, e sobretudo num contexto em que, numa comunicação do dia 31 de Agosto de 2023, dirigida às Alfândegas, é reforçada a necessidade de se cumprir com o quadro legal do concurso, de modo definitivo. Este “dito pelo não dito” mereceu censura do colectivo de juízes que deliberaram por unanimidade manter a suspensão de eficácia antes decretada por despacho de um juiz singular.
As reacções não tardaram: foi construída uma narrativa que transformou o Tribunal Administrativo e as Alfândegas de Moçambique em bodes expiatórios, entregando-se-lhes todos os pecados da saga do feijão bóer, ignorando a “fraude” orquestrada pelo ICM com o lançamento do concurso para selecção de exportadores sob um sistema de quotas há muito abandonado pela Índia.
O incoerente “barulho” das empresas do Grupo ETG
Na lista das 45 empresas exportadoras do feijão bóer, seleccionadas no âmbito do polêmico concurso, estão também as empresas Export Marketing Co, Lda., ETG Pulses Mozambique, Lda., APEL-Agro Processors and Exporters, Lda., Agro Industries, MozGrain, todas pertencentes ao Grupo ETG, um grupo empresarial com raízes e fortes ligações com a República da Índia.
Este grupo de empresas é o único que continua a ecoar o seu “barulho” no quadro da exportação do feijão bóer para Índia, gritando, a todos os ventos, que tem em seus armazéns quantidades acima de 150 mil toneladas de feijão bóer e que não consegue exportar. (Esta é uma mentira que será desconstruída nos próximos artigos).
Mas esse barulho parece incoerente, pois as empresas do Grupo ETG nunca vieram a terreiro contestar o concurso lançado, em Abril de 2023, pelo ICM para exportação daquela leguminosa no sistema de quotas. O Grupo ETG adquiriu os cadernos de encargo do concurso, participou do mesmo, viu as suas empresas a serem seleccionadas para integrar a lista curta dos 45 exportadores, assistiu à atribuição de quotas e realizou exportações ao abrigo dos procedimentos definidos no concurso.
Venkatesh I., “Manager” do ETG em Nacala, em entrevista à “Carta”, em Nacala, foi vago quando lhe colocamos a seguinte questão: se o Grupo ETG sabia das mudanças da política de importação do feijão bóer, na República da Índia, cuja comunicação foi feitaem Dezembro de 2022, mas não impugnou o procedimento do concurso que tinha como bandeira o sistema de quotas. E mais, porquê compraram quantidades de feijão bóer acima da quota que lhes foi atribuída, sabendo que o sistema de quotas é limitativo? “Carta” apurou que todas as 45 empresas da lista curta realizaram exportações nas quantidades que lhes foram atribuídas, tendo Moçambique já exportado para Índia 182 mil toneladas de feijão bóer, continuando a liderar a lista dos países exportadores desta leguminosa para o mercado indiano.
Em Nacala, entre pequenos intermediários na cadeia de comercialização do feijão bóer, reina o sentimento de que a entrada de investidores moçambicanos no sector, como o Grupo Royal e a Mazua Comercial, trouxe ganhos palpáveis aos camponeses, nomeadamente entre 2017 e 2022, intervalo em que o preço do feijão bóer subiu de 5,00 Mts (que era praticado pelo Grupo ETG até os anos 2016) para 35,00 Mts (depois da entrada dos “players” moçambicanos).
E neste ano, muito embora a exportação do feijão bóer tenha sido condicionada pelas variações da política de importação da Índia, o preço do produto subiu para 52,00 Mts/kg, aumentando consideravelmente o rendimento dos produtores. “Esta subida de preços não agrada os grupos estrangeiros”, rematou um operador.(Marcelo Mosse)